Bichos e Ostentação

 Aos domingos, a surpresa da feira livre de Duque de Caxias é a quantidade de gaiolas. Canários e papagaios são vendidos com a mesma naturalidade com que se ofertam cajus e maracujás. Os bichos gritam para sobreviver. Os feirantes gritam para vender. Quem quer, consegue sair dali com um cãozinho, uma iguana ou até uma família de micos. Basta trocar uma ideia com os olheiros.

Eles andam carregando caixas de papelão entreabertas, oferecendo os animais com certa discrição. Alguns ficam parados próximos às bandejas espalhadas no tabuleiro ou no chão, onde é possível ver aves, três ou quatro tartarugas, alpiste e ração. Esses vendedores parecem perdidos no meio da confusão, como se topassem fazer qualquer tipo de rolo.

Quando consultados, levam os interessados às ruas paralelas e vielas onde guardam animais raros — répteis, pássaros de plumagem vistosa, macacos. Muitas vezes, a negociação começa dentro de um grupo de WhatsApp. A feira é o local da entrega.

De Honório Gurgel à Baixada Fluminense, essas transações são o primeiro plano de um quadro maior, um microcosmo de contravenções na cidade. A polícia já sabe que, em diversas comunidades onde se vende bicho em feira, facções ou milicianos alugam casas e galpões para os traficantes de animais. Alguns exemplares são adquiridos pelos próprios criminosos, que os ostentam sobre canos de fuzil ou nas bocas de fumo. Esses grupos também criam animais como cobras e jacarés, tirados do mangue ou de outros biomas, para ameaçar e torturar inimigos.

Eles sabem que os animais não serão apreendidos, já que a polícia dificilmente entraria na favela só para capturá-los.

A polícia acredita que haja um grupo mais seleto de traficantes de animais abastecendo facções e milícias. A internet se consolidou como o meio de comunicação entre as duas pontas.

Quando não é dia de feira, a oferta ao público vem em anúncios nas redes sociais. A reportagem do TAB localizou grupos de compra e venda de répteis, anfíbios e aves silvestres no Facebook. A negociação se dá em comunidades abertas, sem detalhar se o animal é legalizado ou não.

Em um dos grupos de venda de aves na Baixada Fluminense, um dos interessados oferece um cordão de prata em troca de uma arara-canindé, espécie cuja população está diminuindo em seu habitat natural, o Cerrado brasileiro. Outro comprador sugere a troca de um PlayStation 3 por um pássaro.

Cobras filhotes e adultas também são comercializadas livremente. Um vendedor anuncia corn snake, a cobra-do-milho, serpente da América do Norte — sua comercialização é autorizada pelo Ibama desde que o criador tenha registro, o que não é o caso dessas vendas pela internet. "Última remessa de corn snake para venda hoje, 250 reais para ir logo embora", escreve o vendedor, junto com imagens de cobras entrelaçadas nos dedos, como anéis.

Dener Giovanini, coordenador-geral da Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), explica que a rede de tráfico de animais silvestres é interestadual. O sequestro ocorre principalmente nos biomas da Amazônia, do Pantanal e da Mata Atlântica. De lá, os raptores enviam os bichos aos distribuidores, responsáveis pelo transporte até os centros urbanos. O eixo Rio-São Paulo é o maior polo de compradores.

Não há dados nacionais consolidados — cada órgão de fiscalização tem uma metodologia para computar as apreensões, que não passam de 0,5% do total de animais silvestres traficados no país. Só é possível estimar a dimensão desse mercado: segundo um relatório da Renctas, o valor ultrapassa R$ 3 bilhões ao ano.

Um levantamento da Polícia Militar do Rio de Janeiro ao qual TAB teve acesso mostra que, nos últimos seis meses, a maior parte dos crimes contra a fauna fluminense aconteceu em municípios do interior, que fazem limite com Minas Gerais e Espírito Santo.

Jay-Z e Beyoncé vivem juntos em uma favela do Rio de Janeiro. Os dois micos-leões-dourados estão na Vila Aliança, um dos maiores complexos habitacionais da zona oeste. Em março, correu nas redes sociais a foto de um homem que levava os micos pendurados na nuca e um fuzil atravessado no ombro.

Micos-leões-dourados e fuzis têm valores semelhantes. Presentes na nota de R$ 20, os animais que estão sob risco de extinção no Brasil valem mais de R$ 60 mil no mercado clandestino.

Um perfil no Twitter intitulado Bichos do Tráfico tem publicado imagens do tipo. A conta faz uma compilação de fotos e vídeos dos animais que estão em poder de traficantes de drogas e milicianos.

Novos ou antigos, os registros, no geral, são cenas flagrantes de maus-tratos. Muitos seguidores tratam as postagens com humor. Outros, com perplexidade. Em uma das imagens, um mico senta no cano de uma pistola. Em outra, uma arara-canindé repousa as patas sobre a luneta de um fuzil.

Um vídeo publicado em fevereiro mostra um sagui lutando pela vida (ou pela própria vida). O pequeno animal tem uma coleira presa ao pescoço. A outra ponta do acessório, onde ficaria a mão de um ser humano, está na boca de um cachorro, que balança o bicho freneticamente.

O animal usa suas patas para se agarrar a um poste de cimento. A angustiante situação provoca gargalhadas em quem está ao redor. O primata é apelidado de Nino na favela do Muquiço, zona oeste do Rio. O bicho tem um perfil dedicado a ele no Twitter.

Dener Giovanini explica que os bichos capturados em seus habitats e usados como bibelôs são sobreviventes de um grupo anterior que já morreu no caminho. Um relatório da Renctas mostrou que, a cada dez animais silvestres capturados, nove morreram antes da venda.

O lago é mais fundo quando o assunto são seres rastejantes. Em 2014, policiais encontraram um jacaré de 1,5 metro na casa de um traficante em Itaboraí, município da Região Metropolitana do Rio. O traficante confirmou que o bicho era usado para morder rivais e devedores.

Mais recentemente, em novembro de 2021, a Polícia Civil do Rio entrou em uma casa de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com a denúncia de que ali estaria morando Delson Lima Neto. Delsinho, como é conhecido, está foragido desde 2018 — cumpria pena por envolvimento em um assassinato, mas foi liberado numa saída temporária e não voltou. Seu irmão, o também miliciano Tandera, é o criminoso mais procurado do Rio.

Delsinho não estava em casa, mas seu bicho de estimação, sim: era um Paleosuchus trigonatus, o jacaré-coroa, espécie comum na Amazônia brasileira e muito cobiçada no mercado de animais. A Polícia Civil ainda investiga se o jacaré-coroa encontrado na casa do miliciano foi usado para torturar rivais.

"A gente sempre encontra casos assim: entra em uma favela dominada por milicianos para investigar uso irregular do solo, ou uma ligação clandestina de água, e encontra animais em posse deles", afirma o tenente-coronel Sheiny Brasiliano, subcomandante do Comando de Polícia Ambiental da PM do Rio

"Para combater a milícia é preciso ter uma filosofia parecida com a de Sun Tzu: dividir para conquistar. A atuação só dá certo quando são operações integradas. Se vai haver uma operação dentro da comunidade para combater a pirataria ou o tráfico de armas, por que não aproveitar para sufocar outros aspectos da milícia, como o ambiental?", questiona.

O Comando de Polícia Ambiental calcula que, em 2022, 55 animais já foram apreendidos, entre araras, tucanos, gaviões e jabutis, nas operações realizadas em áreas de milícia.

O maior rebanho de hipopótamos fora da África é o da Colômbia. Isso porque Pablo Escobar fez da Hacienda Nápoles um zoológico ilegal cheio de cangurus, girafas e hipopótamos.

Quando o traficante foi morto, em dezembro de 1993, a maioria desses animais foi abrigada em parques e zoológicos do país. Mas os hipopótamos, pesados e difíceis de transportar, permaneceram na área. Os animais grandalhões expulsaram parte da fauna nativa da região e viraram um problema.

Prejuízo ambiental é um termo da moda, diante da falta de recursos e estrutura para reverter o desmonte de órgãos de fiscalização ligados ao meio ambiente. No Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal denunciou o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e os responsáveis pelo Cetas (Centro de Triagem de Animais Silvestres) por negligência. Por regra, o Cetas é o único local apto para receber os bichos capturados em apreensões. A denúncia do MPF aponta que a omissão dos gestores do órgão causou maus-tratos a mais de 900 animais. Em dezembro, o centro de triagem chegou a ser fechado por falta de estrutura.

"Os crimes ambientais no Brasil são considerados de baixo potencial ofensivo. Uma pessoa mata uma onça, desmata uma floresta, polui um rio e não é devidamente autuada. Não há um constrangimento moral. As políticas públicas também falham porque o poder da fiscalização está limitado", avalia Roched Seba, do Instituto Vida Livre.

A reportagem procurou a Secretaria Estadual de Ambiente e Sustentabilidade para uma entrevista. A pasta respondeu com uma nota, assinada pelo Instituto Estadual do Ambiente. O Inea diz que "atua na fiscalização de infrações ambientais contra a fauna em conjunto com outras instituições". Afirmou também ter resgatado 142 aves silvestres de cativeiros e feiras no último ano, além de quatro micos e seis tartarugas.

Enquanto o tráfico de animais silvestre voa, a atuação do poder público parece rastejar.

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