Superlotação não é excesso de presos; problemas são escassez e qualidade da vaga

 Quando atuei como defensor público na área de execução penal, pude me deparar com cenas infelizmente muito comuns na realidade brasileira: presos amontoados em celas minúsculas e fétidas, compartilhando doenças de pele e um calor insuportável, sanitários que não passavam de buracos no chão, entupidos e com dejetos transbordando, sentenciados e presos provisórios misturados entre si e custodiados em contêineres. A lista de abusos, violações e indignidades é longa e conhecida por todos.

No Brasil se prende mal, se prende seletivamente, e não se oferecem opções adequadas e suficientes à ressocialização.

Thathiana Gurgel/DP-RJ

Entretanto, ao contrário do que geralmente se pensa, o problema não é o excesso de prisões, mas sim a qualidade e propósito questionável das mesmas.

Este artigo busca demonstrar que a alegação de excesso de prisões no Brasil é fundamentada em premissas factualmente equivocadas, não como apologia à prisão, mas inspirado no desejo que a discussão de um tema complexo como o fenômeno da criminalidade e do sistema prisional sejam informados por uma análise objetiva e correta, sem paixões e a coloração da ideologia.

O Brasil e o mundo
Com cerca de 832 mil presos, pelos números oficiais do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil, segundo o World Prison Brief , do Instituto de Pesquisa de Política Criminal da Universidade de Londres, possui a terceira maior população carcerária do mundo em valores absolutos, atrás apenas da China e dos Estados Unidos, respectivamente.

Considerando que o Brasil é o sétimo país mais populoso do mundo, essa discrepância geralmente é trazida como o principal argumento em favor da tese do excesso de prisões em nosso território. Afinal, se possuímos a sétima maior população total do mundo, a proporcionalidade ditaria que deveríamos possuir a sétima maior população carcerária global.

Contudo, a comparação em números absolutos é enganosa.

Mais adequada é a comparação da quantidade de pessoas presas proporcionalmente à população do país, ou seja, a quantidade de presos a cada grupo de 100 mil habitantes.

Por esse critério, ainda segundo o World Prison Brief, o Brasil ocupa a 13ª posição no ranking mundial, com 389 presos a cada 100 mil habitantes, atrás de países como o Uruguai, a Turquia e os Estados Unidos, por exemplo.

Essa abordagem, inclusive, traz luz a situações anômalas como a de El Salvador, primeiro no ranking global de encarceramento por 100 mil habitantes, o que se coaduna com o notória prática do governo daquele país na realização de prisões em massa no combate à gangues locais, criticada por organismos internacionais de Direitos Humanos por violação a direitos constitucionais básicos.

Se considerássemos apenas o total bruto de pessoas presas, não se poderia falar que em El Salvador “se prende em excesso”, o que é, no mínimo, debatível.

Veja-se que, independentemente do critério adotado, os Estados Unidos continuam como um país desproporcionalmente punitivista.

Os números oficiais estão errados
A análise acima foi feita baseada na informação de que há no Brasil cerca de 832 mil pessoas presas. Esse número, contudo, não condiz com a realidade.

Conforme noticiado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, estão contabilizadas nesse total pessoas em prisão domiciliar e pessoas cumprindo pena em regime aberto e semiaberto, os quais, como é de conhecimento comum geral, não são executadas em meio fechado.

O regime aberto, nos termos do artigo 33, §1º, “c”, do Código Penal, é cumprido mediante comparecimento em casa de albergado ou estabelecimento adequado, geralmente aos finais de semana. Como na maior parte dos municípios brasileiros não há estabelecimento dessa natureza, o regime aberto é cumprido geralmente mediante condições alternativas, como comparecimento mensal em juízo para assinar uma folha de presença, ou outra condição imposta pelo juízo.

O regime semiaberto, por sua vez, ainda segundo o Código Penal, deveria ser cumprido em colônia agrícola, industrial, ou similar, com direito ao trabalho externo durante o dia. Contudo, igualmente como ocorre com as casas de albergado, inexistem vagas suficientes em estabelecimentos penais compatíveis com o regime semiaberto, ocasionando a colocação dos sentenciados nesse regime, via de regra, em prisão domiciliar, com ou sem monitoramento eletrônico, ou outras condições alternativas à prisão.

De uma forma ou de outra, contabilizar essa massa de pessoas sentenciadas como estando “presas”, para fins de subsidiar eventual argumento pelo desencarceramento, é manifestamente um equívoco.

Não há o que desencarcerar para quem já se encontra em liberdade.

Mas os problemas com os números oficiais não param por aí.

Na condição de juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça, tenho acompanhado o valoroso e imenso trabalho exercido pelos colegas do Departamento de Monitoramento do Sistema Carcerário e da Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) na atividade de saneamento dos dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP).

O resultado, ainda parcial no momento da feitura deste artigo, aponta no sentido de que a quantidade total de “presos” no Brasil, em verdade, não é de cerca de 832 mil pessoas, mas sim de aproximadamente 650 mil pessoas, uma diminuição de cerca de 150 mil presos ou 20% do total da população carcerária, até agora.

Veja-se que se trata de diminuição por correção de dados que haviam sido incorretamente alimentados no sistema, e não por uma real diminuição da população carcerária. Aparentemente, nunca tivemos 832 mil pessoas presas.

Criminalidade violenta e taxa de encarceramento
Ainda que os números oficiais não estivessem equivocados, é possível construir o argumento de que no Brasil, a bem da verdade, prende aquém do que deveria prender, proporcionalmente à criminalidade aqui praticada.

O Brasil, segundo a United Nations Office On Drugs and Crime (Unodoc) , é o país com a maior taxa de homicídios dolosos do mundo.

Em 2020, foram 47.722 homicídios, o que representa um total maior do que todos os homicídios praticados nos Estados Unidos, na Europa, na Rússia, no Japão e na China, somados, naquele ano.

Dos homicídios praticados, segundo o Instituto Sou da Paz , apenas 37% são solucionados pela polícia, com indicação do autor — e um número ainda menor, como se sabe, torna-se denúncias e, eventualmente, em condenação com cumprimento de pena.

Com essa taxa elevadíssima de homicídios dolosos, a maior do mundo, estar apenas em terceiro no ranking de população carcerária global não parece mais ser uma posição assim tão elevada.

Prender não é desejável, mas parece necessário
Subjacente ao argumento de que há excesso de prisões no Brasil geralmente se encontra a crença de que a prisão não é necessária e não evita a prática de novos crimes, servindo apenas para saciar o desejo social de vingança pelo delito praticado.

Contudo, apesar de ser apenas uma correlação e, certamente outros fatores estão em jogo no Brasil, São Paulo é, de longe, o Estado com a maior população carcerária, um montante superior a 200 mil pessoas presas, quase três vezes mais do que o segundo colocado, Minas Gerais, com aproximadamente 70 mil presos.

Simultaneamente, São Paulo é o Estado com a menor taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil, com cerca de 9 homicídios a cada 100 mil habitantes , muito abaixo da média nacional de 23,6, e próximo ao patamar dos países europeus.

Superlotação não é o mesmo que excesso de prisões; problema é a escassez e qualidade das vagas
Comumente são utilizados de forma intercambiável os conceitos de excesso de prisões e de superlotação carcerária no Brasil.

Contudo, esses fenômenos não se confundem. É perfeitamente correto afirmar que, se de um lado não há que se falar necessariamente que há excessos de prisões, relativamente à população brasileira e ao grau de criminalidade violenta, há, inegavelmente, superlotação nos presídios brasileiros.

Isso se deve ao fato simples e conhecido de todos de que há um subfinanciamento no sistema prisional por parte do Estado.

Como não há vagas suficientes, os presídios encontram-se lotados.

O Poder Executivo, a quem caberia investir adequadamente na construção de novas unidades prisionais, e na manutenção na qualidade digna e humana das vagas existentes, usualmente se furta das suas responsabilidades. Investir no sistema carcerário é visto como uma pauta antipática e pouco popular.

Porém, o Poder Judiciário, ao adotar equivocadamente, em nossa opinião, uma política voltada ao desencarceramento, sob, dentre outros, o argumento do excesso de prisões, compactua com a inércia do Poder Executivo e reforça os incentivos presentes para que não haja investimentos suficientes no sistema carcerário.

Se prender em excesso não é a solução ideal para o problema da criminalidade, prender de forma insuficiente também não o é. Uma política focada apenas no desencarceramento não resolverá a realidade desumana daqueles que invariavelmente serão mantidos presos em nossas masmorras medievais que passam por penitenciárias, além de reforçar a já presente sensação de impunidade no imaginário social.

Conclusão
Desmistificar a crença de que há excesso de prisões no Brasil é crucial para estabelecer um debate informado sobre o sistema prisional. Ao analisar dados concretos de taxas de encarceramento, percebemos que o país não se destaca negativamente no cenário global. A discussão sobre o sistema carcerário brasileiro deve ir além de simplificações e considerar fatores complexos para promover uma abordagem mais eficiente e justa diante do desafio da criminalidade.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-dez-14/o-excesso-de-prisoes-no-brasil-um-outro-angulo/