Artigo | 2019, o aprofundamento do sistema carcerário como máquina de morte

 Balanço da Pastoral Carcerária elenca problemas que impactaram e seguirão no futuro das prisões: privatizações, tortura e seguidos massacres

 2019 foi um ano de retrocessos em diferentes áreas no Brasil: cortes na educação, perda de direitos trabalhistas, uma piora na previdência geral, cortes na cultura… a lista é enorme. Na mesma linha, na área da segurança pública e do sistema penal, o que pudemos ver foi o aprofundamento do projeto de massacre da população, especialmente preta e pobre do Brasil.

No que tange o sistema penitenciário nacional, foi um ano marcado pela militarização, avanços das privatizações, projetos de lei fomentadores do encarceramento em massa e da sanha punitivista, e grandes massacres e mortes em todos os estados. 

Uma nova gestão brutal do sistema prisional

No Ceará, o ano iniciou de maneira conturbada. O novo secretário de administração penitenciária, Luís Mauro Albuquerque, anunciou que acabaria com a divisão entre facções em todas unidades prisionais do Estado, proposta que causou forte reação: uma onda de ataques contra centenas de prédios públicos e veículos. 

A FITP (Força de Intervenção Tarefa Penitenciária) foi enviada ao Estado para atuar durante 45 dias, mas ficou quatro meses nas unidades do Ceará. Uma Equipe da Pastoral Carcerária Nacional realizou visitas nas unidades do estado, em julho e agosto, e observou uma gestão marcada por intenso rigor da disciplina na custódia dos presos.

Não é permitido conversar ou rezar em voz alta, durante boa parte do dia os presos são obrigados a ficar em posição de “procedimento”: agachados, enfileirados, com as pernas cruzadas e as mãos atrás da cabeça, que deve se manter baixa. 

Em conversas com os presos e presas, agentes penitenciários e demais trabalhadores do cárcere todos foram unânimes em dizer que as mudanças foram implementadas após a intervenção da FTIP. A equipe da Pastoral ainda encontrou um número grande de presos com os dedos calcificados, por conta da quebra do metacarpo e da falange – tortura típica praticada pelos agentes da Força de Intervenção. Tal tipo de tortura pode ser vista no Relatório do Mecanismo e também já foi defendida pelo secretário Mauro Albuquerque em uma audiência pública

O Ceará nos parece uma espécie de laboratório para o que poderia ser uma nova gestão penal, uma vez que as novas práticas de custódia foram aplicadas em todo o Estado. 

Privatização: o lucro em cima do sofrimento e das vidas

As muitas iniciativas de privatização de prisões foram constantes neste ano. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou no início do ano que todo o sistema prisional paulista – o maior do país – seria privatizado. No entanto, após pressões, a proposta passou para a privatização de quatro novas unidades em regime de cogestão e de futuros projetos de parcerias públicos privadas. 

No Rio de Janeiro foi proposto o PL (Projeto de Lei) 190/2019, que autoriza a contratação de empresas em regime de PPP (Parceria Público-Privada) para construção e administração dos presídios. No Paraná, o Governador Ratinho Júnior (PSD) defendeu a privatização das gestão das unidades prisionais, citando o Estados Unidos como exemplo de sucesso.

O discurso de privatização não passa de um grande engodo, uma vez que os argumentos de que a gestão privada seria mais barata e mais eficiente (melhores taxas de segurança e ressocialização) são meramente retóricos, não são reais. 

Em primeiro lugar, tanto no Brasil quanto nos EUA, os presídios privatizados se mostram mais caros que os públicos. No Brasil, a média de custo de um preso é de R$ 2.500, enquanto em um privatizado o valor chega até R$ 5.000. No que tange à segurança, o Compaj, unidade privatizada gerida pela empresa Umanizarre, foi palco de dois grandes massacres, em 2017 e neste ano.

E nos EUA, o Departamento de Justiça lançou em 2017 relatório atestando que os presídios privatizados, além de mais caros, apresentam maiores taxas de fugas, motins e mortes. 

Fábrica de cadáveres 

O número de mortes em dois massacres no Norte do país neste ano superou a quantidade de mortos no massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos em ação da PM paulista no ano de 1992. Os massacres de Manaus (AM), em maio, e em Altamira (PA), em junho, tiraram, respectivamente, 55 e 62 vidas, resultando em 117 pessoas que tiveram suas vidas ceifadas sob custódia do estado. 

Em ambos os casos, a posição do Estado foi de alegar que os massacres teriam resultado de uma “briga entre facções” e dizer que a ocorrência foi uma fatalidade que não poderia ser evitada. Omite, assim, a função do sistema carcerário de torturar cotidianamente as pessoas que estão presas, não só por meio da violência, mas também pela superlotação, condições degradantes do espaço, saneamento e alimentação precários.

Esse discurso tem como objetivo tirar qualquer tipo de responsabilidade por parte do estado e trivializar a morte de 117 pessoas, ignorando o sofrimento de seus familiares. A Pastoral Carcerária esteve presente em Manaus, Altamira e Belém após os massacres (o complexo prisional da região de Belém sofreu graves consequências por conta do massacre em Altamira), conversando e apoiando familiares e as equipes de pastoral, e o que fica claro a partir dos relatos é que já se sabia que os massacres ocorreriam; mesmo assim nenhuma medida foi tomada para preservar essas vidas. 

E as mesmas condições de tortura e subvida que levaram a ocorrência destes massacres se mantém, pois não se implementam medidas para prevenção de um novo massacre, uma vez que a única medida tomada pelo Estado em um momento de “crise” é o envio de tropas de elite repressoras para dentro dos presídios, com o objetivo de “apaziguar” por meio da violência. 

As prisões de Manaus e Altamira, assim como de muitos outros estados, continuam sendo uma bomba-relógio, com novos massacres podendo ocorrer a qualquer momento.    

Sofrimento legalizado 

Após um ano de discussões, o pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, foi aprovado teve sanção presidencial. O pacote tem propostas que tendem a endurecer a legislação penal e a violência do estado, como o aumento do tempo máximo da prisão de 30 para 40 anos, do cumprimento do regime disciplinar diferenciado, maior dificuldade da progressão de regime, a criação de um banco genético, aumentos de pena em diversas condutas e a legalização do flagrante, garantindo imunidade aos policiais.

Não houve estudo para a aprovação do pacote, apenas um discurso populista de que o aumento de pena e maior rigor com aqueles selecionados pelo sistema reduziria a violência. E ao mesmo tempo que esse tipo de legislação é aprovada, órgãos fiscalizadores do sistema prisional vem sofrendo ataques, junto com um maior fechamento do cárcere.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sofreu um fortíssimo ataque, com a exoneração de peritos que trabalhavam há anos na denúncia de torturas ocorridas no cárcere. A Pastoral Carcerária vem sofrendo restrições em muitos estados da federação, junto com outras entidades que estão sendo impossibilitadas de entrar nas unidades para realizar qualquer tipo de trabalho de assistência religiosa e humanitária.

Da mesma forma, também é imposto aos familiares uma série de regras e condições para visitarem seus parentes presos. No Ceará, as famílias só podem visitar uniformizadas, por exemplo. Em outras localidades, como no Pará, as visitas foram proibidas de levar comida às pessoas presas. Em outras localidades os itens são extremamente restritos e em quase todo o país continuam os relatos de revista vexatória.  

A luta continua  

Mas nem tudo está perdido: pelo contrário, a luta continua e se fortalece cada vez mais. Diversas organizações e militantes ao redor do país têm criado Frentes Estaduais pelo Desencarceramento, com o propósito de debater alternativas ao sistema carcerário e articular atores para agir, urgentemente, em defesa da vida e contra um sistema cuja função principal é matar a população jovem, preta, pobre e mulheres.

Em Fortaleza, foi realizado o IV Encontro da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que contou com a presença de familiares, egressos e organizações, para partilhar experiências e pensar em articulações para o ano que vem. 

Por mais desanimador que esse projeto de mortes seja, seguimos juntos com milhares de voluntários/as da Pastoral Carcerária, aliados à outras organizações nesta luta ao lado de nossas irmãs e irmãos, para que possamos alcançar o sonho de Deus: um Mundo Sem Cárceres. 

Fonte: PONTE