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Policial honesto, tinha a polícia como inimiga

O ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Renan Basto Cercado por corruptos, policiais que preferiam aderir ao crime do que a combatê-lo, Serpico era um estranho no ninho. Pior: a malta insaciável via nos ilícitos a forma de faturar, sem que ninguém pudesse reclamar, pois a corrupção – saliente-se – é sempre uma via de duas mãos.

O policial quixotesco viu-se totalmente sem espaço. Passou a denunciar os pilantras a quem hierarquicamente pudesse interessar. Sua recompensa maniqueísta por acreditar que o bem pudesse vencer o mal foi um tiro no rosto, abaixo do olho e parte superior dom maxilar. Ficou surdo do ouvido esquerdo.

Valeu a pena? Ele, nascido no Brooklin e integrante do Departamento de Polícia de Nova York, fez tudo o que deveria e poderia fazer em termos de dignidade, caráter e honradez. O tiro destruidor foi disparado por outro policial, durante uma operação anti-drogas, pervertendo os conceitos de ética, alcaguetagem ou dedo-duragem, como se fosse ele quem devesse ser extirpado, e não os colegas que se locupletavam com o crime.

Frank Serpico, filho de imigrantes italianos, havia servido ao Exército por dois anos durante a Guerra da Coréia, sem desconfiar que o grande combate a ser travado estava pertíssimo dele, na cidade de NY.

Frank Serpico

Frank Serpico

Reprodução/Facebook

Acabou sendo testemunha formal anti-corrupção, no início dos anos setenta. Foi promovido a detetive, a Polícia local passou por uma grande reforma, ganhou distintivo de ouro e medalha de honra.

Como personagem, foi imortalizado pelo ator Al Pacino, numa grande interpretação. Personagem místico, virou ponto de interrogação entre a chamada “tigrada”, pejorativo felino usado para aqueles que extrapolam todo e qualquer limite da decência. Existem opositores do bem, pois toda regra tem exceção, mas o mundo do bas-fond contamina, contagia, corrompe, sugere, seduz.

Esse lúmpen criminal é avassalador, razão pela qual quem trabalha na Polícia da própria Polícia, isto é, a sua Corregedoria, não desfruta de trânsito institucional confortável. Embora decisivo para cortar na carne e evitar metástases, não costuma ser bem visto.

Exatamente por isso os Serpicos locais sequer são lembrados, ou, quando são, as referências são apenas folclóricas. É o caso específico de um delegado da Polícia Civil de São Paulo, Renan Basto – assim mesmo, Basto sem o “s”.

O Serpico norte-americano antecedeu a formação das chamadas “Cinco Famílias”, que comandavam a Máfia em NY nas décadas 70 e 80: Gambino, Lucchese, Genovese, Colombo e Bonanno. Aqui, um pouco antes, anos sessenta, o comando contravencional era do jogo do bicho, que mantinha uma “caixinha” por todos os lados.

Al Pacino interpretou Serpico no cinema

Al Pacino interpretou Serpico no cinema

Reprodução / IMDB

Foi nesse cenário que Renan Basto viveu na Polícia. Para onde fosse designado, era sempre símbolo de encrenca: se queriam alijá-lo de prejuízos, para onde fosse simplesmente fazia tudo o que deveria fazer, atraindo a ira dos superiores e provocando sua transferência para lugares considerados símbolos do ostracismo.

Assim foi, por exemplo, com o então chefão do jogo do bicho, Ivo Noal. Ele mantinha uma fortaleza, central de apuração, em plena avenida Senador Queiroz, a poucos quarteirões do prédio do antigo Departamento de Investigações. Renan, o incômodo, fora encostado na Delegacia de Jogos, onde a corrupção era matéria prima. Que fez nosso quixote policial? Pediu ajuda ao Corpo de Bombeiros e com uma escada Magirus invadiu o fortim, apreendendo todo o material de jogo e detendo uma turba de contraventores.

Foi um deus-nos-acuda. Nunca se vira antes uma coisa dessas na Polícia e Renan Basto viu-se novamente transferido, dessa vez para a obscura Delegacia de Acidentes de Trânsito. Lá, desengavetou muitos inquéritos, nos quais casos dolosos eram tratados como culposos. Uma dinheirama circulava sem chamar a atenção.

Para livrar-se uma vez mais de Renan, criaram uma nova delegacia para ele, à época bem distante, a 33ª, em Vila Mangalot, perto de Pirituba. E assim ele foi amargando seus dias, perseguido, preterido, sofrido, injustiçado, temido, odiado, evitado. Simplesmente porque era um policial exemplar. Mas sem espaço.

Basto, sem referências históricas na Polícia, é nome de uma rua na Vila Guarani, zona sul. Foi a única coisa que sobrou de sua memória, embora o escritor colombiano Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura, bem tenha escrito: ”a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.

Recordar, no caso, é prestar um tributo. Até Nova York precisa recordar antes de Serpico. No distante 1887, seu superintendente de Polícia, George Walling, observava: “Conheço perfeitamente a força desta poderosa combinação: política e polícia. Tentei resistir-lhe e o resultado foi o mais desastroso para mim. Enquanto se permitir a existência dessa força, perdurarão demoras e corrupções sobre a força que deve sustentar a honra, a integridade e o bem-estar de nossos cidadãos”. Tais palavras soam hoje como proféticas, diante das denúncias bem posteriores de Serpico, embora contemporâneas como sempre.

Em que época viveu Renan Basto? Governo estadual Ademar de Barros. Havia caixinha institucionalizada até no gabinete do secretário de Segurança. Este, Cantidio Sampaio, quando Ademar foi cassado, fugiu (!) às pressas de seu gabinete, então no Palácio da Polícia, antes da sala ser invadida por um major da Aeronáutica. Walling, o de NY, tinha toda razão: Cantidio, anos depois, seria o líder do Governo na Câmara dos Deputados e pai do projeto de lei para nascer a Lei Fleury, nome para enaltecer o beneficiado e não o autor do texto legal: até ali, todo acusado de homicídio (processos do Esquadrão da Morte), ao ser pronunciado (decisão de levá-lo ao Tribunal do Júri) era automaticamente preso.

Até hoje, existem pressões políticas sobre a Polícia, que não consegue gerir seu próprio destino sem interferências indevidas. Há políticos que se gabam de possuir poder suficiente para mandar, escolher, interferir, determinar. Como se policiais fossem marionetes em suas mãos.

Renan Basto atravessou toda essa turbulência, incólume, protegido por uma couraça moral, mas profundamente desgostoso com tudo que vivia e sabia de um cenário putrefato, infectado por vírus nas almas, o que o deixava profundamente decepcionado e solitário.

Apesar de tudo, não houve como a sua Polícia deixar de fazer-lhe minimamente justiça. Justiça feita por gente de fora, na ascensão política transitória do poder, e não de dentro. Foi escolhido para ser delegado-geral de Polícia, o chefe da instituição. Reconhecimento mais do que tardio e super-merecido.

Mas Renan Basto ficou esgotado psicologicamente por ter suportado além do suportável. E tomou a atitude, desistir, que se covarde de um lado, é corajosa por outro. Pendurou-se no cano do chuveiro. E partiu, sem nada declarar, nada escrever, nada consignar, nada registrar.

Acho que não precisaria: sua vida foi o suficiente para contar tudo, legado para o presente, lição para o futuro, recordações inesquecíveis que merecem ser lembradas, contadas e projetadas.

 Fonte: r7.com

 

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