ONG que atua na defesa de condenados injustamente critica método de reconhecimento de suspeitos do Brasil

Dora Cavalcanti é uma das diretoras da ONG Innocence Project no Brasil  — Foto: Adriana Justi/G1 As histórias de Igor Barcelos, de 22 anos, Atercino Ferreira de Lima Filho, de 51 anos, e Antônio Cláudio Barbosa de Castro, de 35 anos, têm elementos em comum entre si. Os três viveram o drama de uma condenação judicial incorreta e conseguiram reconquistar a liberdade após a atuação da ONG Innocence Project.

O trabalho desta organização no Brasil começou em 2017, mas sua história remonta a 1992, quando surgiu, em Nova York, um projeto para provar a inocência de pessoas condenadas injustamente.

A ONG brasileira faz parte de uma rede de outras 57 organizações espalhadas pelos Estados Unidos e outras 14 ao redor do mundo. Desde 1992 os grupos já conseguiram reverter a condenação de mais de 350 inocentes.

Para navegar o complexo sistema judiciário brasileiro, os três advogados que coordenam o projeto no país criaram critérios para selecionar os casos em que vão investir.

Rafael Tucherman, um dos diretores da ONG no Brasil, explica que a atuação é restrita a processos que já tiveram condenação definitiva, com uma pena de mais de 5 anos de prisão, e que possam ser resolvidos a partir da obtenção de novas provas, para além das que já foram apresentadas à Justiça.

Reconhecimento falho

A maior parte das condenações incorretas no Brasil tem problemas na fase do reconhecimento do suspeito, segundo os advogados da ONG. O índice global do reconhecimento como uma das causas que levaram ao erro judicial, nos casos em que o condenado era inocente, é de quase 70%, de acordo com Rafael Tucherman.

Além de procedimentos de reconhecimento feitos de maneira incorreta pelas polícias, há ainda o peso que é dado para esse tipo de prova pela Justiça brasileira.

"Muitas vezes esse reconhecimento, que pode ser falho, é o único ou o principal meio para condenação judicial", explica Tucherman. "O Brasil ainda está bastante atrasado nisso."

O advogado cita ainda uma decisão de agosto deste ano na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou uma condenação judicial que se baseava exclusivamente em reconhecimento fotográfico.

"O reconhecimento fotográfico é completamente frágil e muito pior que o reconhecimento tradicional, que já tem falhas. Ele nunca poderia ser usado unicamente, como prova determinante. Ainda assim, uma decisão dessa precisou chegar no STF para ser anulada", diz Tucherman.

O diretor da ONG destaca que a relevância dada ao reconhecimento leva a uma convicção incorreta entre os agentes do sistema de Justiça. Para eles, se a pessoa foi reconhecida, ela passa a ser automaticamente considerada como culpada.

Rafael Tucherman é advogado e coordenador da ONG Innocence Project — Foto: Arquivo pessoal

Cada país tem um protocolo específico de reconhecimento de suspeitos. No entanto, há características que são seguidas em praticamente qualquer lugar.

"Antes de tudo, a vítima precisa descrever os traços do suposto autor do crime. Só então começa o procedimento de reconhecimento. Um dos protocolos mais conhecidos é que o suspeito não pode ser colocado pra reconhecimento sozinho, outras pessoas precisam ser colocadas ali, e deve haver um grupo ou mais em que o suspeito sequer está presente", explica Tucherman.

Além disso, é indicado que o policial que organiza o reconhecimento não saiba quem é o suspeito entre os participantes do grupo. Isso evita que a vítima ou testemunha seja influenciada pelo oficial.

Para Dora Cavalcanti, também diretora da ONG, é urgente que as polícias brasileiras passem a respeitar os protocolos de reconhecimento na apuração dos casos.

"Nós temos um longo caminho a percorrer, mas a primeira medida necessária é respeitar o que já prevê o nosso código de processo penal, com cuidados no reconhecimento para que a testemunha seja confrontada com algumas pessoas de perfil semelhante", diz Cavalcanti.

Sucessão de erros

Apesar da prevalência de incoerências durante a fase de reconhecimento dos suspeitos, os coordenadores da ONG acreditam que as condenações de inocentes não costumam ter um único responsável.

"O erro raramente é causado por uma pessoa individualmente. Geralmente ele acontece por uma sucessão de ocorrências que está alem da atuação de um único ator do sistema", diz Tucherman.

Os especialistas da ONG avaliam que a estruturas das polícias brasileiras é precária, as investigações geralmente são muito demoradas e a coleta de provas costuma ser feita de maneira bastante rudimentar. Apesar disso, a organização acredita que é possível melhorar o cenário para que erros nas condenações sejam menos comuns.

"Nosso projeto não pretende apontar o dedo para ninguém. Nossa intenção é colaborar para uma melhoria no sistema de Justiça criminal brasileiro, mostrando porque os erros acontecem e tentando reverter alguns dos erros que já aconteceram", afirma Tucherman.

Enquanto nos Estados Unidos, onde o projeto nasceu, já existem estatísticas oficiais de erros judiciais, aqui no Brasil ainda não há dados que permitam à ONG identificar o que pode melhorar no sistema. Segundo Tucherman, um dos objetivos da Innocence Project no Brasil é criar uma base de dados que mostre onde ocorrem os erros, para conscientizar os atores do sistema judiciário.

"Quanto mais ampla for a defesa, quanto mais diligente for o advogado e quanto mais abertos estiverem o Ministério Público e os juízes para a atuação da defesa e os dados oficiais sobre erros, menores serão as chances de um equívoco acontecer", diz.

Fonte: https://g1.globo.com/