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A morte no sistema prisional e a crueldade de representantes do Estado

 Às mortes ditas naturais nas prisões do Brasil e suas crueldades adjacentes, somam-se as mortes violentas. Há uma chance 6 vezes maior de morrer numa cadeia brasileira do que na sociedade livre.

“Hoje faz 7 dias que meu filho morreu. Eu pedi tanto para atenderem meu filho! Fui na assistente social, fui no enfermeiro, e não levavam o meu filho no hospital. A cada visita ele estava definhando mais. Sentia dores, passava muito mal. Eles me prometiam que ele seria levado no hospital, mas na semana seguinte, nada. Eu fui a tantos lugares. No final, meu filho foi internado e não me avisaram. Quando cheguei para visitá-lo na prisão, ele não estava. Levaram meu filho quase morto. Implorei para estar com ele no hospital.  Me disseram que precisava de autorização judicial. Eu não tinha mais forças, pedi ajuda para todo mundo, contratei um advogado e quando pude encontrá-lo, ele já não sabia mais que eu estava lá. Não mais podia dizer minha princesa, minha rainha, como ele fazia. Ele era um bom filho, sempre trabalhou, sempre me ajudou. Por que fizeram isso com meu filho? Por que não me permitiram o direito de ser mãe, de estar com ele”? 

Com detalhes e emoção, ela irradiou verdade. Falou numa reunião, repetiu numa audiência pública, insistiu de todas as formas que pôde porque não queria que outras famílias passassem pelo que a sua estava passando. As precariedades das condições de vida dos estabelecimentos prisionais não podem ser naturalizadas, ela dizia. Era uma voz eletrizante que denunciava: o Estado não pode se transformar, por ação ou omissão, no criminoso que ele diz querer punir, delegando aos servidores penais essa tarefa perversa de controle a qualquer custo em nome da suposta “proteção” da sociedade. 

O relato dilacerante de Ana, mãe de um jovem preso, reitera a análise de Vera Malaguti quando, ao tratar dos suplícios públicos do século XVIII às mazelas prisionais do século XXI, conclui que “a história da pena é mais violenta e horrível que a do crime”. Com 23 anos, detido pela primeira vez, ele não sobreviveu ao descaso da máquina penal.

Os crimes praticados por pessoas comuns contra outras podem ser revoltantes e trazer perdas irreparáveis. Porém, quando representantes do Estado o fazem, a perplexidade é maior. De qualquer pessoa se espera civilidade, mas de agentes estatais, para quem confiamos a vida e a segurança, exige-se responsabilidade, comprometimento com a verdade, preparo e a preocupação em agir de forma ética e dentro da lei. Quanto isso não acontece, a sensação de desamparo e injustiça tem efeitos sociais corrosivos.

O desespero de encontrar um familiar entregue à custódia do Estado sem remédio ou atendimento médico, transtorna. Na sociedade livre, muitas vezes também não são encontrados os recursos necessários, por falta de profissionais ou procedimentos as pessoas sofrem e perdem suas vidas. Porém, há a possibilidade de tentar buscar ajuda de amigos, ir a outros locais, aguardar o tempo que puder a consulta. A pessoa presa não tem essa alternativa, irá ver seu quadro se agravar sem sair da cela, dependendo de autorização para seguir a um ambulatório na prisão, quando existe, aguardando a liberação da escolta para o atendimento externo. Negar socorro não é pouca coisa. Os procedimentos administrativos sabem esconder intencionalidades atrozes. 

Os funcionários não passam ilesos, o sofrimento desses ambientes os atinge em várias dimensões. Ele pode ser expresso de algumas formas, uma é pelo adoecimento ao ver as pessoas presas sendo sujeitadas a rotinas antinaturais, ao descaso, à falta de sentido; outra é por meio da dessensibilização que permite justificar a atuação da instituição e a sua própria, admitindo ilegalidades e negligências, neutralizando o conflito interno.  

Neste contexto, as burocracias são muito funcionais, como máquinas, alienando as pessoas do significado do seu trabalho, operando os carimbos, escaninhos, autorizações e revogações. Mesmo em cenários desprovidos de lógica, elas são um recurso para que não seja necessário tomar contato com a dolorosa realidade. Por outro lado, presenciar ou participar de atos cruéis implica em pagar um preço em seu próprio senso de humanidade. A burocracia montada para desumanizar a pessoa presa só funciona se desumaniza também seus agentes.

Ana não foi a única pessoa que foi impedida de estar com seu familiar para ampará-lo e despedir-se quando em estado grave de saúde. Por vezes, mesmo a autoridade médica afirmando que são os últimos momentos da vida, que o quadro é imobilizador, a burocracia do controle requer uma autorização para o encontro. Familiares das pessoas presas são lançados como bolas de bilhar, em um jogo sem regras e razoabilidade, entre a administração penitenciária e o sistema de justiça: 

– “A senhora precisa solicitar ao juiz”. 

– “O diretor do presídio deve autorizar”. 

– “Pede para a Defensoria, é mais rápido”. 

Orientações desencontradas, em tempos próprios, que não correspondem ao fôlego da vida. 

Foi nesse cenário de insensibilidades que conheci Juliana. Ao receber a notícia do câncer do pai preso, viajou de outra cidade para visitá-lo em estado grave no hospital que havia sido internado. Ao chegar na UTI, foi informada pelos médicos do quadro e que, embora estivesse consciente, poderia não sobreviver até o dia seguinte. Os responsáveis pela escolta, mesmo conhecendo o prognóstico, entenderam que era necessária uma autorização judicial. Ela falou com o diretor do estabelecimento, implorou compaixão, tinha coisa importante a dizer, não teve sucesso. Foi ao Fórum, o juiz estava em audiência, não houve encaminhamento. Ligou para Ouvidoria Nacional, explicou o caso. Nossa vez de fazer contato com as autoridades no estado, inclusive o Secretário. Enfim, tarde da noite, a administração disse que autorizaria. Na manhã seguinte, quando se cumpriria a decisão, ao fazer contato com Juliana, soube que era tarde.

No estado inconstitucional de coisas do sistema prisional brasileiro parece que sempre é possível ficar pior. Se é difícil compreender a permissividade das autoridades com a ilegalidade do descumprimento da Lei de Execuções Penais em contraposição ao rigor da defesa da ordem pública pela enxurrada de prisões provisórias, imaginem aceitar a burocracia a serviço da vingança quando a ampulheta da vida chega ao fim. 

Às mortes ditas naturais nas prisões do Brasil e suas crueldades adjacentes, somam-se as mortes violentas. Há uma chance 6 vezes maior de morrer numa cadeia brasileira do que na sociedade livre. Um massacre não é fato fortuito. Tensões, medos, ameaças antecedem e sucedem esses assassinatos atrozes. Funcionários, mães, pais, filhos e tantas outras pessoas conhecidas das pessoas presas são impactadas de forma permanente. João, José, Rodrigo, Cezar, Daniel, homens e mulheres, tem sua existência interrompida sob a custódia do Estado, com sentimentos de indiferença e até satisfação de parte da população.

Afinal, o que queremos para o nosso país?

Para uns – como policiais e agentes penitenciários – entregamos a ilusória capa do Batman, exigindo o sacrifício do herói por um resultado que não lhes cabe; para outros, imprimimos a etiqueta do inimigo público, alvo fácil que justifica a violência da repressão estatal. Vidas e dinheiro público se esvaem nessa guerra fabricada que processa como questão burocrática banal a vida e a morte de pessoas.  

Lidar com a violência e a criminalidade presentes na sociedade brasileira implica compreender os fenômenos multifatoriais envolvidos e as estratégias de prevenção e enfrentamento necessárias. Reverberando os discursos mais simplistas, vingativos e cruéis, as autoridades estatais dizem não só da sua incapacidade de exercer sua função, mas também alimentam o que há de pior em nossa sociedade, carcomem nossa noção de justiça, nos fazem retroceder na nossa expectativa civilizatória.

Valdirene Daufemback é psicóloga, doutora em Direito e coordenadora do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB. Foi ouvidora e diretora do Departamento Penitenciário Nacional e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.


 

Fonte: justificando

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