O Procurador de Justiça, a Ditadura do Politicamente Correto e a Merda

Eopiniaopublicom dedicação à liberdade de expressão e à verdade (in memoriam) e em homenagem do Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira.

Recentemente um ilustre membro do Ministério Público, comprometido com a constitucionalidade e a legalidade e não com o politicamente correto, com as aparências e simbolismos ou com o apelo midiático, manifestou-se sobre a decisão do STF que perverte o conceito de trânsito em julgado, estabelecendo sua ocorrência mesmo quando ainda pendentes recursos nas vias extraordinárias (Especial ou Extraordinário).

Comprometido, como já frisado, com a legalidade e a constitucionalidade, obviamente criticou fortemente a decisão que viola frontalmente o duplo grau de jurisdição em sua conformação ampla e a presunção de inocência. Fez isso num programa midiático e o apresentador confrontou os argumentos jurídicos e racionais bem postos pelo estudioso e operador do Direito com o “supra sumo da sapiência humana”, qual seja, a “maravilhosa”opinião pública.

A resposta certeira do Procurador foi que a “opinião pública é uma merda”. Pois é, a opinião pública é mesmo uma merda. Vamos primeiro imaginar o que diria um cientista (que é o que é o mencionado Procurador na área jurídica), se alguém o confrontasse em seus argumentos técnicos, baseados em pesquisas e estudos de muitos anos em oposição a uma suposta “opinião pública”, formada no “ouvir dizer”, no “disse me disse”, no “ouviu o galo cantar não se sabe onde”? Pois é...

Agora vamos a alguns exemplos históricos: segundo a opinião pública Jesus Cristo deveria ter sido crucificado e humilhado e foi! Segundo a opinião pública, durante muito tempo mulheres eram consideradas seres inferiores, inclusive intelectualmente e isso influenciou o Direito. Segundo a opinião pública insuflada por discursos inflamados na Alemanha nazista, judeus, gays, ciganos e outras pessoas inferiores deveriam ser eliminadas e o foram. Segundo a opinião pública direitos humanos são direitos de bandidos, mesmo que isso signifique abrir mão da própria condição humana. Creio que já seja o bastante.

Fato é que essa propalada “opinião pública” é menos que merda. É, na verdade, algo inexistente, uma figura de linguagem etérea que é utilizada sempre que se pretende dar ares de legitimidade a qualquer espécie de barbaridade ou imbecilidade. Afinal, quem dita ou quem é o dono, quem constrói essa tal “opinião pública”? Com que base informacional ela se erige e se legitima a ditar as regras de tudo?

Não se desconhece que a “opinião” (“doxa”), embora desprovida de maiores aprofundamentos e inconsistente inicialmente (vide o que dizem Aristóteles e Platão a respeito), deve ser levada em consideração como ao menos um ponto de partida para reflexões mais profundas. No entanto, isso é muito diverso de adotar seu norte como um dogma. Mais diverso ainda é coartar a liberdade de expressão e crítica, de maneira que nem mesmo certas palavras mais fortes possam compor um discurso contra essa propalada “opinião pública”.

O grande problema é que não somente no Brasil, mas como um fenômeno mundial, vão surgindo espécies de gurus da mídia que se apresentam inclusive como supostos “especialistas” e divulgam “opiniões” que ganham as massas por seu apelo emocional, simplista e desinformado, semeando a ignorância a tal ponto que o errado se torna certo e o certo, quando dito, assusta porque parece errado. Assim ocorre aquilo que Black denominou de “predominância da impostura”.

Mas, será que a palavra “merda” não seria muito forte ou grosseira para andar na voz de um Membro do Ministério Público em um programa midiático? Talvez num país onde a Democracia engatinhe, onde o “politicamente correto” domine as pessoas e instituições e as faça tremer diante de uma crítica mordaz e sincera. Diante, principalmente, da verdade escancarada. Nessas condições pessoas e instituições são por demais suscetíveis. Sua debilidade intelectual e moral é digna de piedade.

Já na Universidade de Princeton, é possível que um filósofo professor emérito edite uma obra intitulada “On Bullshit”, traduzida no Brasil pela Editora Intrínseca, por Ricardo Gomes Quintana como “Sobre Falar Merda”.Isso sem nenhum susto ou suscetibilidade extremada. A questão certamente é de maturidade intelectual, democrática, expressiva etc. Na puerilidade uma palavra só pode ser entendida como um “palavrão”, como uma “ofensa” e não pensada no contexto da crítica, ainda que ferina. Especialmente no contexto da liberdade de expressão e pensamento. Essa é a puerilidade, a infantilidade de nossa suposta Democracia que engatinha. E ao engatinhar se convola em uma “Ditadura do Politicamente Correto”. Uma “Ditadura” ridícula, burra, contraproducente, autodestrutiva, uma verdadeira “Ditadura de Merda”.

Voltemos a Frankfurt e entendamos o contexto crítico da manifestação do nobre Procurador. Para o filósofo de Princeton há uma grande diferença entre dizer a verdade, falar mentira e “falar merda”. Falar merda é muito pior do que mentir descaradamente. Isso porque quem mente tem ao menos uma preocupação com a verdade, nem que seja aquela de rodeá-la, enredá-la em um nó de fraude. Mas, o mentiroso ao menos se preocupa com a verdade, ainda que seja para adulterá-la de forma vil. Por outro lado, aquele que se contenta em “falar merda” produz uma “verborreia” irresponsável sem medir qualquer consequência. Esse é o âmago da “opinião pública”, isso quando ela realmente existe. São “opiniões” desprovidas de qualquer compromisso com a busca da verdade, do conhecimento correto. Abre-se a boca para soltar alguma coisa, uma coisa qualquer, pouco importa o que seja. Os intestinos são mais seletivos e limitados. A boca da “opinião pública” não tem limites, dela tudo pode sair. Nas palavras de Frankfurt:

“É essa falta de preocupação com a verdade – essa indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são – que considero a essência do falar merda”.

E mais adiante:

“Tanto quem mente quanto quem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada um reage aos fatos como os entende, embora a reação de um seja guiada pela autoridade da verdade, enquanto a reação do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suas exigências. O falador de merda as ignora como um todo. Ele não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir”.

Entretanto, somente quando há maturidade suficiente e até mesmo um mínimo de cultura para sopesar o significado contextual de palavras que podem inclusive ter uma aplicação em uma obra erudita, embora possam, em outro contexto, serem usadas como ofensas e palavrões, é que se poderá dizer que deixamos de engatinhar seja intelectual, moral ou democraticamente, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão e crítica. Certamente, diante da reação perante a manifestação do nobre Membro do Ministério Público, fato é que estamos muito, muito longe disso. Infelizmente pode-se dizer que tudo isso indica que estamos mesmo na merda!

Referências

BLACK, Max.The Prevalence of Humbug. Ithaca: University Press, 1985.

FRANKFURT, Harrry G.Sobre Falar Merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005.

BLACK, Max.The Prevalence of Humbug. Ithaca: University Press, 1985, “passim”.

FRANKFURT, Harrry G.Sobre Falar Merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005, “passim”.

Op. Cit., p. 39.

Op. Cit., p. 62.

Eduardo Luiz Santos Cabette

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia e Professor Universitário

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e...