Como o Brasil trata nas prisões seus “cidadãos menos queridos”

Se Nelson Mandela estivesse vivo, com certeza diria que o sistema carcerário brasileiro está falido e que nossas penitenciárias são o retrato do país

tnt“Ninguém sabe verdadeiramente o que é uma Nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma Nação não deve ser julgada pela forma como trata seus cidadãos mais elevados, mas seus menos queridos.”

A frase é de Nelson Mandela, presidente da África do Sul no período de 1994 a 1999. Ele foi considerado o mais importante líder da África negra. Lutou contra o apartheid, sistema racista oficializado em 1948 em seu país. Passou 27 anos na prisão antes de ser eleito presidente. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 1993. Morreu em dezembro de 2013.

Se estivesse vivo e no Brasil, o que Mandela diria sobre nossas prisões? Com certeza constataria que há duas políticas carcerárias em nosso país. Uma para os “cidadãos mais elevados”.

Nessa categoria, com certeza estão incluídos políticos e grandes empresários condenados sob a acusação de envolvimento no desvio de bilhões de reais dos cofres públicos.

Esses detentos ficam em presídios especiais. Não sabem o que é cumprir pena em uma cela superlotada. Recebem tratamento médico digno. Conseguem autorização para cuidar da saúde fora da prisão, com médico e em hospital particulares. Têm acesso à alimentação diferenciada. Nunca experimentaram uma “quentinha” azeda. Podem ler jornais, revistas, livros. Ouvir rádio, assistir à televisão. Estudar e escrever.

Alguns desses políticos, mesmo os que ainda não foram julgados e são presos provisórios, também não ficam em celas superlotadas, inclusive os que estão no Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro, como um ex-governador e uma ex-primeira-dama, ou na Papuda, no Distrito Federal.

Os presos da categoria “cidadãos mais elevados” não desfrutam de privilégio, mordomias ou outros benefícios na prisão. São tratados como determina a Lei de Execução Penal.

Já os “cidadãos menos queridos” têm outro tratamento carcerário. Convivem em celas superlotadas em meio a dezenas de detentos com problemas pulmonares e doenças de pele.

Essa é a realidade dos CDPs (Centros de Detenção Provisória) de São Paulo, o estado mais rico da federação. Em um xadrez com capacidade para 12 presos, estão amontoados ao menos 70. A maioria tem de dormir em redes amarradas às paredes.

Nenhum desses presos, ou seja, nenhum desses “cidadãos menos queridos”, tem conta bancária em paraísos fiscais. Muitos deles cometeram crimes de menor potencial ofensivo.

Não desviaram bilhões de reais dos cofres públicos. Alguns cometeram furto. Furtaram um salame, um chocolate ou outro alimento de algum mercado para matar a fome. Porém, para esses “cidadãos menos queridos”, a Lei de Execução Penal praticamente não existe.

Esses presos não têm assistência médica. Dividem durante meses o pequeno espaço da cela superlotada com colegas tuberculosos. Eles deveriam ser tratados como os “cidadãos mais elevados”.

O resultado desse tratamento desigual é o surgimento e o crescimento das facções criminosas no país. No Brasil, grupos rivais de criminosos cumprem pena lado a lado. Nenhum deles surgiu nas ruas, mas nas prisões.

O Massacre do Carandiru foi o estopim. As rebeliões sangrentas, com presos decapitados, tornaram-se rotina de Norte a Sul. Em Manaus, entre 1º e 2 de janeiro, morreram 56. Em Roraima e Rondônia, ocorreram outras 18 mortes em outubro passado. Em Fortaleza, foram mortos 14 presos em maio de 2016. Em Pedrinhas, no Maranhão, foram contabilizadas 18 mortes em 2010.

Em todos esses presídios os detentos tinham armas e telefones celulares. Eles filmaram a carnificina. As imagens mostram os presos decapitando alguns rivais e queimando outros vivos, enrolados em colchões.

Se Nelson Mandela estivesse vivo, com certeza diria que o sistema carcerário brasileiro está falido e que nossas prisões são o retrato do Brasil. Para os “cidadãos mais elevados”, tudo. Para os “menos queridos”, nada. Esse é o pensamento defendido por grande parte da sociedade brasileira.

* Josmar Jozino, colaborador da Ponte Jornalismo, é jornalista especializado em crime organizado e autor de três livros sobre o PCC (Primeiro Comando da Capital).

Fonte: http://ponte.cartacapital.com.br/