As entidades do terceiro setor campeãs de eventos esportivos bancados por vereadores da cidade de São Paulo compartilham os mesmos fornecedores, centralizam gastos nas mesmas empresas e já foram alvo de representação com pedido de apuração dos processos.
Conforme o Metrópoles revelou, há uma indústria de eventos com preços inflados bancados com emendas parlamentares, em ações que vão de projetos de videogame até artes marciais.
O Observatório Social do Brasil – São Paulo (OSB-SP), organização formada por voluntários, vem acompanhando o assunto desde 2020 e chegou a fazer uma representação no Tribunal de Contas do Município (TCM-SP) cobrando investigação de suspeitas de irregularidades nos gastos.
Além da verba recebida pelas entidades, o levantamento constatou uma mudança de foco nas emendas, privilegiando o segmento de eventos e esportes. Enquanto as emendas parlamentares destinadas à Secretaria da Saúde caíram mais de 60%, de R$ 50,2 milhões, em 2020, para apenas R$ 18,2 milhões, em 2024.
Por outro lado, as verbas mandadas pelos vereadores para projetos na área passaram de R$ 16,7 milhões para R$ 81,3 milhões — um aumento de 387% no período.
O Metrópoles mostrou que, em 2024, os vereadores paulistanos gastaram R$ 200 milhões (78%) dos R$ 256 milhões liberados em atividades que se encaixam nas categorias de eventos esportivos, culturais e parcerias com projetos sociais.
Já as emendas destinadas à área da saúde respondem por 7% do total no período. Neste ano, 41% das emendas foram enviadas para a área de esporte: R$ 12,3 milhões. O valor representa mais de cinco vezes o recurso de emendas voltadas à Saúde.
Campeãs de emendas
A apuração do observatório mostra que a entidade que mais recebeu emendas foi a Confederação Brasileira de Karatê Interestilos (CBKI), um total de 85. A entidade arrecadou um total de R$ 30,7 milhões entre 2021 e 2024.
Essa empresa tem entre os fornecedores dos últimos anos, primeiro, a empresa Dmix Eventos e, depois, a Shalom Eventos.
A segunda colocada no ranking da OSB, a Federação Estadual das Ligas e Esporte Amador do Estado de São Paulo (Felfa-SP), com 47 emendas e R$ 15,7 milhões, também utilizou as empresas como fornecedoras ao longo dos anos.
Outra entidade entre as mais beneficiadas é a Liga Master de Futebol Amador, que, segundo o levantamento, contratou a Dmix para eventos para a realização de eventos de artes marciais. Mais recentemente, no ano passado, outra empresa contratada pela Liga Master, dessa vez para ações de sua área de atuação, o futebol, foi a Gabii Eventos. No fim de 2024, a empresa foi incorporada pela Dmix.
As sedes da Gabii Eventos e da Shalom Eventos têm o mesmo endereço, em São Caetano. No entanto, a Dmix, que incorporou a Gabii, e a Shalom, negam qualquer vínculo e afirmam ser empresas independentes.
A Liga Master recebeu 29 emendas, totalizando R$ 5 milhões em verbas. Entre os eventos realizados pela entidade, estão 11 simpósios de futebol amador que chamaram a atenção do observatório. “Os fornecedores utilizados pela organização contratada nos 11 seminários totalizaram um valor de R$ 1.302.419,00 de recursos públicos. Destes, R$ 1.296.617,00 (99,5%) foram destinados a uma só empresa a DMIX Produções e Eventos”, aponta OSB.
Pontos suspeitos
Ao todo, 338 entidades receberam recursos distribuídos em 1207 emendas de vereadores em São Paulo entre 2021 e 2024. Foram quase R$ 245 milhões em verbas liberadas.
Um dos pontos que chamou a atenção do OSB foi o fato de que, em alguns casos, a quase totalidade dos eventos seja feita por uma das empresas. Há situações em que uma mesma empresa loca videogames, skates, tatames e geradores.
“Alguns fornecedores são contratados para múltiplos serviços, como se não houvesse outras empresas”, pontua Gioia Matilde Alba Tumbiolo Tosi, vice-presidente de operações do OSB-SP.
A representação cita alguns fornecedores que receberam recursos não têm expertise no serviço prestado, além de problemas nas prestações de contas. Um dos exemplos citados é sobre provas efetivas de entregas de quimonos, camisetas, medalhas e lanches.
“O que foi feito com possíveis sobras, visto que há vários eventos iguais em locais diversos?”, questiona Gioia.
Gastos inflacionados
O Metrópoles analisou centenas de páginas de prestações de contas de entidades do terceiro setor que realizam projetos que vão de aulas de videogame a lutas marciais.
A reportagem encontrou uma série de escolhas das entidades que inflam os custos dos eventos, como alugar itens por valores muito superiores aos preços de compra dos bens no mercado e alto percentual de gastos em atividades secundárias – como, por exemplo, dezenas de diárias de fotógrafos que apresentam material de qualidade amadora.
A Felfa-SP, por exemplo, gastou R$ 63 mil do dinheiro público em 32 diárias de 10 Playstations 4. A diária de cada equipamento sai por R$ 199 – a reportagem localizou em uma plataforma na internet opção na faixa dos R$ 350 por mês.
Se a entidade optasse por comprar os equipamentos novos, com cada aparelho na faixa dos R$ 3 mil, seria possível adquirir 21 videogames, que poderiam ser reutilizados em outras edições deste mesmo programa.
Embora o aluguel seja uma opção comum em parcerias, a aquisição de bens, em vez da locação, é permitida desde que seja mais barata e siga critérios técnicos.
Os gastos também incluem R$ 70 mil para um gerador, que tem entre suas funções garantir que equipamentos não queimem, embora o valor deles seja muito menor do que o da locação da fonte extra de energia.
Entre os diversos profissionais contratados para a ação, estão 32 diárias de um técnico eletricista (total de R$ 12,1 mil) e também de uma fotógrafa profissional (total de R$ 17,5 mil).
O que dizem os envolvidos
A Felfa-SP afirma que os serviços e valores foram analisados e aprovados pela Secretaria Municipal de Esportes, com parecer técnico favorável, e que os custos envolvidos são compatíveis “com a natureza das atividades, a estrutura exigida e os critérios técnicos estabelecidos nos editais públicos”.
A entidade ainda afirma que as empresas Gabii Eventos, Shalom Eventos, Dmix prestaram serviços distintos, conforme escopo previsto em cada projeto, e que possuem CNPJ ativo, regularidade fiscal e habilitação técnica.
Já a repetição de fornecedores, de acordo com a Felfa-SP, se deve à “eficiência operacional, histórico de prestação de serviços e compatibilidade com as exigências técnicas dos projetos”.
Sobre a locação dos videogames, a entidade justifica que, além do uso dos equipamentos pelos jovens, os valores incluem seguro, manutenção, montagem e assistência técnica.
Em relação ao gasto com gerador para que nenhum videogame queime, a entidade diz que o investimento se justifica para “garantir a continuidade da atividade, a segurança dos participantes e a integridade dos bens locados”.
A CBKI informa que busca contratar a empresa do ramo “que melhor atenda às exigências técnicas do projeto” e que “nem todas as empresas possuem as condições técnicas para as melhores práticas da modalidade. “Por vezes não oferecem compatibilidade de material e tecnologia, não possuem material para locação na quantidade necessária no período, no local do projeto, ou não prestam o serviço adequado”.
A entidade ainda argumenta que em qualquer parceria com órgão público é exigido a apresentação de “ampla pesquisa de preços em empresas do ramo, “utilizando sempre o menor preço cotado, sem o qual a parceria não é aprovada”.
Em nota, a DMix afirma que todas as suas atividades são executadas em conformidade com contratos, termos de referência e planos de trabalho aprovados por órgãos públicos competentes. A empresa também diz que adquiriu a empresa Gabii Eventos e que, portanto, esta não “coexiste mais como empresa independente” e que não houve atuação simultânea das duas empresas em um mesmo projeto após a aquisição.
A Shalom Eventos afirma, em nota, que é pessoa jurídica distinta e plenamente independente. Quanto ao endereço, a empresa diz que o referido local é utilizado exclusivamente para fins administrativos, em sistema de coworking, não havendo qualquer compartilhamento ou operação conjunta com as demais pessoas jurídicas mencionadas.
A reportagem mandou e-mail para a Liga Master de Futebol Amador, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.
A Secretaria Municipal de Esportes e Lazer informa que os processos da pasta respeitam a legislação vigente e que qualquer irregularidade constatada poderá acarretar sanções às organizações sociais.
A pasta diz, ainda, que está elaborando uma tabela de preços detalhada para as despesas realizadas por entidades conveniadas, com objetivo de estabelecer critérios para o controle de gastos, fortalecendo a governança e a fiscalização dos recursos destinados ao esporte.
Fonte: https://www.metropoles.com/sao-paulo/farra-emendas-campeas-verba